Confira um trecho de “Ressuscitar mamutes”, novo romance da premiada escritora Silvana Tavano. Na obra, ciência e literatura viajam no tempo dos sonhos para chegar ao impossível
Por Felipe Maciel
Silvana Tavano acaba de lançar pela Autêntica Contemporânea seu segundo romance adulto, “Ressuscitar mamutes”. Caminhando entre a ficção, o ensaio e as memórias, a escritora recria um passado e imagina um futuro para sua mãe.
Tema central em sua obra, o tempo é protagonista dessa história na qual literatura e memória caminham juntas, traçando rotas para transcender o presente. “De certos lugares, e na hora certa, é possível ver o passado e o futuro”, escreve Silvana Tavano.
A partir da perspectiva da mulher madura que se revela narradora dessa história, o ficcional, o científico, o fabulário e o ensaístico se entrelaçam, formando um mosaico que reúne tanto as presenças quanto as ausências de um histórico familiar.
“Tentei capturar todos os tempos num só tempo. Isso significa sentir tudo de uma vez, o que não é fácil. Tem uma memória teoricamente verdadeira (mas nunca é) e tem a lembrança do que não aconteceu, do que poderia ter acontecido. E mesmo a suposta memória ‘verdadeira’ volta híbrida, como os mamutes que, se um dia voltarem, serão ‘mamofontes’, mistura de mamute com elefante.”, apontou a escritora em entrevista para a revista Quatro cinco um.
Confira um trecho exclusivo do livro:
De certos lugares, e na hora certa, é possível ver o passado e o futuro. A visão é mais nítida no Deserto do Atacama, no Chile; em Mauna Kea, no Havaí; ou, ainda, na Nova Zelândia, no Aoraki Mackenzie Dark Sky Reserve. Mas, de qualquer ponto do planeta em que a vida das cidades não ofusque o céu noturno, é possível ver estrelas que já não existem e estão lá. Nos observatórios astronômicos, turistas do mundo inteiro se deslumbram com o passado do Universo brilhando nas luzes que levam milhares de anos para chegar aqui. Porém somente alguns – poucos – se deixam capturar e embarcam em outro tipo de excursão. Continuam em meio ao grupo, e, como todos estão com os olhos no céu, quase ninguém percebe o que acontece com essas pessoas. Encravadas no globo ocular, duas estrelas ocupam o lugar das pupilas e brilham para dentro. Os relatos variam: alguns dizem ver o que já não existe existindo. Outros afirmam avistar claramente o que ainda não é sendo. De formas diferentes, todos relacionam a estranha experiência com a certeza de uma presença simultânea em todos os tempos ou no que seria um tempo uno e contínuo.
Invento viagens fantásticas relendo o “Manual de instruções”, de Cortázar, a primeira parte de Histórias de cronópios e de famas, em uma edição de 1977. Na dedicatória, um amigo daquela época escreveu: “Bom ter por perto um cronópio como você (ou seria cronópia?)”, e chego ao prefácio da tradutora Gloria Rodríguez, descrevendo brevemente o temperamento destes seres fantásticos: os famas são práticos, cautelosos e, acomodados, “embalsamam suas recordações”. Penso em minha mãe, que talvez se encaixasse aí, mas nunca entre os cronópios, tipos que se deixam embalar pela poesia, desligados e indiferentes ao cotidiano, que “cantam como as cigarras e, quando cantam, esquecem tudo, perdem o que levam nos bolsos e até a conta dos dias”. Mas Cortázar ainda descreve uma
terceira categoria – as esperanças –, e aqui, sim, identifico a natureza da minha mãe, uma dessas criaturas que “[…] sedentárias, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens e são como estátuas que é preciso ir ver porque elas não vêm até nós”.
Para ir até ela, é preciso narrar o impossível. Viajar pela palavra sânscrita kalpa, que contém a ideia de um tempo apenas intuído, que transcorre em uma grande escala cosmológica – o tempo da “passagem de milhões de anos no vazio infinito do espaço”, como define a escritora Ella Frances Sanders em Lost in Translation, um livro-compêndio de palavras intraduzíveis. Viajar por kalpa em busca de outras vidas que não a dela – vidas que poderiam ter sido, antes e depois, um presente em que cabem todos os tempos.