26 de agosto de 2024

Intimidades reveladas

Novo livro de Julia Wähmann, ‘Triste cuíca’ é um livro-diário, mas é também uma rica e divertida reflexão sobre a escrita e a memória

Por Felipe Maciel

“Daqui a vinte ou trinta anos, ao reler meus escritos de agora, vou saber separar os fatos da ficção?” trecho de Triste cuíca, novo livro de Julia Wähmann

Durante o longo período de reclusão imposto pela pandemia, Julia Wähmann passou a registrar em diários o momento terrível e extraordinário que o mundo atravessava. Em 2022, a escritora decidiu revisitar os textos que havia escrito no ápice daquele momento histórico recém-vivido. A investigação, porém, a levou a rever anotações íntimas da sua infância e adolescência – “um oceano de constrangimento”, ela resume.

A esses vestígios do passado, somaram-se reminiscências dos relatos de seu avô escritos durante a Segunda Guerra Mundial, em que ele descreve sua experiência durante um dos episódios mais marcantes da história do século 20, e a costura com leituras de diários diversos de grandes escritores, como Virginia Woolf, Carlos Drummond de Andrade e Annie Ernaux.

Foi a partir desses fragmentos de intimidades inscritas no papel e das subjetividades diante das circunstâncias históricas que surgiu Triste Cuíca (Janela + MapaLab), novo livro da escritora carioca. Na obra, ela traça um inventário sobre a construção da memória e como a escrita interfere e cristaliza instantes da vida e da história.

“Acho que toda memória é contaminada ou moldada por elementos externos, ao menos em alguma medida – pode ser a escrita de diários, uma foto, as diversas versões de um mesmo fato contado por outras pessoas. Ao mesmo tempo, nesse percurso do livro, me vi confrontada com anotações contrárias a certas lembranças, o que é curioso.”, pondera a autora.

Ao adentrar pela janela indiscreta de diários aleatórios, com suas verdades íntimas e inconfessáveis, Julia traça uma genealogia do gênero. Como em um feed literário, ela muda de tema para flagrar frações do tempo. São nesses instantes em que se desenrola a vida acontecendo em sua mais ordinária banalidade, mesmo quando a dramaticidade assume o palco da história. 

Na próxima quarta-feira, dia 4 de setembro, a escritora promove na Livraria da Tarde em São Paulo, às 18h30, o lançamento da obra com sessão de autógrafos e bate-papo com Paloma Vidal.

Nesta entrevista exclusiva, conversamos com Julia Wähmann sobre seu novo livro. Confira!

  1. Como surgiu seu novo livro, Triste cuíca? Em que circunstância a obra foi escrita? Você vê alguma relação entre o novo livro e seus livros anteriores, Manual da demissão e Cravos? Se sim, qual seria?

O livro surgiu de algumas inquietações provocadas pelo primeiro ano da pandemia de Covid-19, um evento de proporções radicais que tentei registrar e apreender em diários e textos escritos no calor da hora. Naquele primeiro ano, tudo era terrível e extraordinário, uma experiência coletiva e individual ao mesmo tempo, assunto incontornável dos dias. Aquele material bruto foi revisitado a partir de 2022, e comecei a cortar e acrescentar novos trechos, costurando com leituras de diários diversos, tanto meus, da infância e adolescência, quanto diários de grandes escritores.

Vejo algumas relações. Os três livros têm afinidades com a crônica, à medida em que tratam de assuntos cotidianos e são compostos de cenas e eventos corriqueiros. O Cravos é um livro mais fragmentado, cheio de silêncios e elipses, que se aproxima do “Triste cuíca” em sua estrutura. Já o Manual da demissão é um livro que aposta no humor, ainda que o assunto não seja dos mais felizes, e o Triste cuíca tem também seus momentos de alívio cômico. Acredito que os três livros tenham uma voz narrativa em comum, uma certa introspecção.

  1. No livro, você apresenta uma pesquisa sobre a escrita de diários, costurando o seu próprio hábito de registrar experiências pessoais, com o de seu avô durante a Segunda Guerra Mundial e de personalidades célebres, como Virginia Woolf, Annie Ernaux e Carlos Drummond de Andrade. Como a escrita e o hábito de registrar fragmentos da vida atua na construção da memória? De que maneira a escrita de diários cristaliza e interfere na memória?

Acho que toda memória é contaminada ou moldada por elementos externos, ao menos em alguma medida – pode ser a escrita de diários, uma foto, as diversas versões de um mesmo fato contado por outras pessoas. Ao mesmo tempo, nesse percurso do livro, me vi confrontada com anotações contrárias a certas lembranças, o que é curioso. Essa leitura em retrospecto me fez questionar, diversas vezes: se eu não tivesse escrito tal coisa, sobre tal pessoa, será que me lembraria? Essas perguntas estão no livro e me guiaram enquanto escrevia sobre os dias da pandemia, e também me guiaram quando comecei a trabalhar os textos brutos, privados, para que se tornassem um diário-livro. Não tenho as respostas, mas se tivesse, desconfio de que não haveria livro. 

  1. Em determinado trecho do livro, você escreve: “Lygia [Fagundes Telles], por sua vez, enxerga a escrita de diários como ‘a fonte primária das mulheres tentando se dizer, tentando se explicar, tentando se desembrulhar’. Ela me faz pensar que os diários íntimos foram os primeiros tijolos de que dispusemos para dar início à construção de um teto todo nosso, como queria Virginia Woolf.” Na sua avaliação, por que a escrita de diários se tornou associada a uma ideia de prática feminina?

A publicação de livros, por séculos, foi privilégio dos homens (e ainda trabalhamos nessa reparação). Os diários, em certo ponto, aparecem como possibilidade de construção da subjetividade das mulheres, como um meio de investigação da linguagem, de modos de estar no mundo, enfim, além de ser um suporte muitas vezes confessional, único recurso de liberdade, mas que se manteve à margem por anos. Os próprios diários, no entanto, também podem ser vistos como privilégio de classe, uma vez que ficaram circunscritos a uma elite alfabetizada, com acesso à cultura. O Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus, talvez seja o maior exemplo de um diário que rompeu todas as barreiras do gênero.

Em seu livro mais recente, Três camadas de noite, Vanessa Bárbara aborda alguns diários, correspondências e biografias de personalidades, como Clarice Lispector e Kafka. Uma das coisas de que mais gostei no livro é a maneira como ela aborda as vidas dos irmãos Henry James e Alice James. Ambos sofriam de depressão e tinham o desejo de escrever. Enquanto Henry teve tudo a seu dispor (e se tornou um grande escritor), Alice teve sua vida sufocada pelo tratamento dispensado às mulheres da época.

  1. O livro foi escrito durante a pandemia, e o tema é abordado em diversas passagens da obra, em que reflete sobre o trauma daquele momento e as sequelas emocionais que causaram. No entanto, em sua escrita, você faz referências a outros momentos traumáticos da história e como eles foram registrados em diários e livros. Seriam os diários uma fonte fidedigna para desvendar circunstâncias extremas da história?

Acho que os diários são fontes interessantíssimas, sim, para a pesquisa e investigação de momentos históricos. Os jornais e os documentos históricos oficiais olham para as passagens traumáticas com uma preocupação de apreensão de um todo, com uma abrangência mais homogênea. Os diários, os registros íntimos, dão nuances, sabor e uma noção mais profunda do dia a dia de pessoas comuns atingidas por um mesmo fato. Os livros da Svetlana Alexievich nos dão esse panorama, à medida em que ela colhe centenas de depoimentos de pessoas que passaram por acontecimentos extremos, como a explosão da usina de Chernobyl e as grandes guerras. Os livros dela abrem diversas portas para a compreensão de um mesmo evento, é fascinante o efeito que produzem.

Se pegarmos diários individuais de uma mesma época, ou diários de pessoas que passaram por uma mesma doença, por exemplo, teremos depoimentos cheios de pontos em comum, mas muito particulares, e todos atravessados pelas circunstâncias sociais e políticas de cada diarista.

  1. Diários são narrativas autobiográficas e confessionais que, quando revelados e com o passar dos anos, se tornam cada vez mais coletivos. “Nós escolhemos nossos objetos e lugares de memória, ou melhor, o espírito da época decide o que vale a pena lembrar. Os escritores, artistas, os cineastas participam da elaboração desta memória.”, registrou Annie Ernaux em seu diário. Diários são vestígios de um tempo? De uma época?

Acho que sim, muito por registrarem costumes, comportamentos, mudanças, enfim, abrangem uma infinidade de temas, assuntos e por se concentrarem no presente dos fatos registrados, acabam se tornando uma fonte confiável de tempos e épocas.  

  1. Voltando a Virginia Woolf, em determinado trecho do livro você recupera uma passagem em que ela, abismada, registra, em meio aos bombardeios de Londres na Segunda Guerra Mundial, que seu livro mais recente seria um fiasco comercial e de crítica. Carlos Drummond de Andrade tinha o hábito de rasgar seus próprios escritos e a mãe de Annie Ernaux queimou os diários da filha para preservar a imagem dela. Diários podem também trazer à tona nosso lado menos heróico e mais trivial? Eles revelam perigosas “provas contra si”?

Certamente revelam um lado mais trivial. Nos diários da Virginia, por exemplo, tem passagens maravilhosas em que ela se dedica a espinafrar roupas alheias – pense que é a Virgínia Woolf falando mal de um chapéu e é muito superior a muita coisa que a gente lê por aí!

  1. O livro é um híbrido de crônica, ensaio e memórias. Como avalia essa mistura de gêneros tão presente na literatura contemporânea e também em sua escrita?

Escrevo, também, e principalmente, com minhas limitações, e elas acabam por definir caminhos e escolhas. Durante muito tempo me ressenti de não conseguir escrever um tipo de ficção mais clássica, com plot, personagens, me dei conta que eu mesma enxergava essa literatura mais cotidiana como algo menor. Aos poucos, fiz as pazes com isso e hoje me vejo mais interessada, como leitora também, em livros que enveredam por essas investigações e aproximações com o que está próximo, com a matéria-prima das gavetas, do cotidiano, dos baús de família. 



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