21 de setembro de 2022

Confia que dá

de João Schlaepfer
sobre “Agora agora”, de Carlos Eduardo Pereira
todavia

Ao final, um pio contínuo.

Não como aqueles clássicos e batidos de um eletrocardiograma que emite uma nota só. Como aqueles de quem toma um tapa na orelha ou uma bolada no nariz e fica um tempo em transe. 30 segundos. 2 minutos. 4 anos. Nunca se sabe.

Carlos Eduardo Pereira em seu brilhante “Agora agora” (todavia) é um maestro. Abre o romance com imagens sonoras e, como logo na primeira cena, incomoda. A “musiquinha insuportável” do despertador que todos conhecemos grita e, por mais que esteja tudo na cara, agora, tomamos um livro todo para acordar.

Profundamente sincero, o narrador fala sem pretensões eloquentes. O narrador se corrige, muda de ideia, como humanos que somos. O narrador abre a porta e por vezes cede sua história a outros personagens, sem os quais ele certamente não seria quem é: Catirina, Sartori. E a gente leitor corre junto para encaixar as peças.

Obrigado pela confiança, Carlos. Um maestro sabe bem usar os silêncios e induzir a finalização dos acordes no momento preciso. O jogo de ritmo bem executado se une à sua habilidade de descrever sem datilografar as sensações que ele gostaria que o leitor tivesse. Sem precisar forçar, sem precisar muitas vezes sequer descrever, ele constrói corpo e peso com a boa escolha de suas palavras precisas.

Assim “Agora agora” desafia quem chega. Se chegou agora já está atrasado. Mas não tem problema. Da Leopoldina, o narrador nos coloca lá dentro, dentro da história (de muitas histórias), de tal modo que andamos juntos, vendo e acompanhando todas as etapas do caminho que percorre, mas, como caminhar no Centro do Rio de Janeiro, mesmo passo após passo, em certo momento você se pergunta: como vim parar aqui? Em seguida, ao refazer o trajeto, vê que todas as curvas estavam lá, mas que sua paisagem era tão envolvente, e os sons tão marcantes, os tapas tão fortes, os dias tão duros, que, ao seguir o “prucurundum”, não se deu conta que virou mais uma à direita e por isso, agora, o narrador tomou conta de você.

Quebrada a última barreira da resistência de um leitor cético, fica somente o narrador impiedoso, que confia no interlocutor sem entregar em excesso e constrói seu humor – muitas vezes pútrido – nas elipses e nos parênteses que abre e depois volta para nos buscar.

Aos poucos, Jorge expõe seus temas nas opiniões: “Eu não sei de nada e tenho raiva de quem sabe, tenho raiva, quero muito é que morra quem sabe.” A virilidade da ignorância canta. De frente a um passado escaradamente atual, ao lado de um presente incomodamente retrógrado, Carlos nos situa no tempo por meio de referências, mas sem soberba, de tal modo que nos faz questionar se é ficção ou se é biografia das boas. Uma história de histórias brasileiras. Uma história de cidades. Uma história de assuntos brasileiros que, assim como no mundo lá fora, não se dissociam. Carnaval. Religião. Violência. Prostituição. Manifestações culturais populares. Violência doméstica. Militarismo. Racismo. Identidade. Colorismo. Autoafirmação. Machismo. Homofobia. Paternidade. Conspirações. Sincretismo. Uma confluência de brasis reais que surpreendentemente estão todos neste livro, cada um com seu devido lugar testando nossos próprios posicionamentos sem, em momento algum, levantar bandeira ou cair em alguma espécie de moralismo ou discurso fácil. (Talvez o contrário.)

Carlos vai nos homens que funcionam. Nos que não funcionam. Nos que fingem funcionar. Nos que não querem funcionar, afinal, é costume, palavra recorrente no vocabulário de Jorge. Vai nos homens morríveis. Nos homens matáveis. E sorte a do homem que valer a pena, porque “no máximo em duas horas são feitas as homenagens fúnebres, se for o caso de o finado merecê-las”. Se for.

A finitude está sempre na cara e, irônica, nega sua própria visceralidade: “é que a Morte quando chega para levar alguém ela não se contenta com uma vida apenas, a Morte quer mais — quando tem que levar um de nós para o outro mundo, a Morte geralmente aproveita a fresta aberta para levar logo três —, portanto não é mesmo o caso de falar de tristeza, é preciso festejar para que se engane a Morte”.

Não se pode confiar nem no morto. “Não dá para confiar na tecnologia. E nem na memória.” Não dá para confiar em muita coisa mesmo. “A mentira é ferramenta de consolo.” Sem dó, neste livro não há consolo. Pelo menos não há mentira. Os risos cessam. O humor se modifica. O país fica claro. – Mentira. Jamais será. – O narrador fica íntimo. Ele conta do presente, sobre ele mesmo. Ele conta do passado, conta de sua família, de 1939, de 1989. Conta de vida. Conta de morte. Conta de tempos idos. Alguns há mais tempo. Outros mais recentes. Ainda assim, assustadoramente, todos os tempos são agora agora.


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