27 de junho de 2023

“Falando dele, é de mim que falo” – Felipe Charbel

Fascinada com o livro “Saia da frente do meu sol” (Autêntica Contemporânea), a agente literária Julia Wähmann compartilha seu entusiasmo com a obra.

Por Julia Wähmann 

“Não deixou filhos, não deixou bens, não era eleitor e faleceu sem testamento conhecido”, diz a certidão de óbito de Ricardo, personagem central de Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel. Figura que não aparece nem nas fotos nem nas filmagens caseiras de uma família típica da classe média carioca, tio Ricardo passou alguns anos morando no quartinho de fundos da casa de Felipe, quando ele ainda era uma criança, depois de ter ocupado cômodos semelhantes em casas de outros parentes.

O atestado de óbito é das poucas lembranças mais vívidas que o autor-narrador tem do tio, pelo fato de ter sido declarante de sua morte. “Dândi do subúrbio” – o epíteto de tio Ricardo dá a pista de um passado boêmio, desde sempre à margem da família, que o via como um agregado, em certa medida um estorvo. Debilitado na velhice, mas sem perder a altivez, o cheiro desagradável é outra lembrança que contrasta com a afinação da voz, que se revela ao entoar “A volta do boêmio” numa manhã de ressaca. “Falando dele, é de mim que falo”, Charbel diz, ao mesmo tempo em que reconhece não ter dado atenção ao tio nos anos de convívio, apesar do interesse pelo “disse-me-disse” em torno dele.

Antes de torná-lo protagonista de Saia da frente do meu sol, Charbel já tinha ensaiado levar a figura do tio para a literatura, em um conto que despertava a curiosidade dos amigos, mas que acabou ficando pelo caminho. O fascínio por tio Ricardo, o homem confinado, agarrado a seu radinho, como se vê, já se espalhava.

No início de 2020, Ricardo volta a povoar o imaginário de Charbel, que descreve um hábito do tio: “(…) o seu destino de todas as manhãs – era a varanda. Ali, Ricardo se acomodava numa cadeira de vime, fechava os olhos e deixava as primeiras luzes do dia tocarem seu rosto, seu tronco, suas pernas. Ficava uma hora, duas horas desse jeito, imóvel como um lagarto, papeando com os passarinhos na língua deles, até que o sol esquentava para valer e tingia mais um pouco a sua pele sempre bronzeada. Eu tinha a impressão de que esse era o único hiato de alegria nos seus dias muito longos, um costume, quase um rito, que deixava o resto da jornada um tiquinho mais tolerável.” O banho de sol matinal na varanda passou a ser uma pequena tábua de salvação para Charbel, nos meses mais duros da pandemia e do isolamento.

O projeto literário que gravitava ao redor do tio começa a tomar corpo quando o autor encontra uma caixa de fotografias que dão novas pistas sobre a vida oculta de Ricardo. Dentro da caixa, um saquinho guarda as imagens mais eloquentes, em formatos miúdos. Como quem brinca com bonecas russas: a caixa dentro da caixa, o conto dentro do ensaio, Charbel vai tecendo a vida, ou uma possível vida, de tio Ricardo em um tom intimista, com doses de delicadeza e acidez. A homossexualidade do tio, no contexto dessa família de classe média da Tijuca, é o fator que o condenou sempre aos quartinhos dos fundos.

A certa altura, Charbel menciona o livro Vidas minúsculas, no qual o escritor Pierre Michon se debruça sobre pequenas biografias de gente sem muito brilho,“homens e mulheres que deixaram pouquíssimos rastros de suas passagens pelo mundo”.Seguindo a mesma lógica, Charbel aposta na falsa opacidade das vidas ordinárias, comuns.

Gosto especialmente de uma passagem do livro que diz: “Foi só aí, enquanto passava os olhos pelas fotografias e folheava os documentos do meu tio, só aí percebi o que me incomodava no texto [o conto]. Me incomodava que em vez de narrar a vida eu me limitasse a contar a sua morte, que era só o que eu conhecia com propriedade a respeito de como ele viveu. Também me incomodava que restasse tão pouco da pessoa real no que era para ser a história de Ricardo, e não de todas aquelas máscaras que, com os anos, baseado no que sussurravam em festas e reuniões de família, fui moldando a partir do rosto dele: o malandro emérito, o solteirão convicto, o boêmio da Lapa, o dândi do subúrbio, o cão que rosnava para a tevê, o monge fornicador, aquele que dominava o idioma dos passarinhos, o agregado, o petulante, os escombros de um ser humano, o inquilino do quartinho de fundos, o homem que arrastava pela vida um balde de mijo.” “Saia da frente do meu sol” é um livro para ser lido e relido – deixe separada a sua canção preferida do Nelson Gonçalves para ouvir ao final.


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